Um belo dia, como parte da palestra de um ex-árbitro e dirigente da área de uma federação, fiz um teste de arbitragem. O palestrante exibiu um vídeo com jogos de uma Copa do Mundo, que nos mostrava uma sequência de jogadas com situações que pediam uma decisão do árbitro (regra 05), desde deixar seguir até marcar falta (regra 12), mostrar ou não um cartão e qual cartão mostrar, se assim fosse o caso. Vimos cada jogada uma única vez e marcamos nossa decisão.
Depois, revimos e fizemos uma nova marcação ou mantivemos a primeira. Nem preciso lembrar que essa possibilidade não existe para o cara que está lá, no gramado, se esfalfando sob o famoso e popular sol senegalês ou embaixo de chuva ou num jogo alumiado pela maravilhosa iluminação de nossos estádios…
O resultado frustrou-me. Não lembro meu nível de acertos, mas foi baixo, a metade ou pouco mais. Não passei vergonha sozinho, pois nenhum dos meus companheiros de palestra logrou resultado muito melhor e uma boa parte conseguiu ser ainda pior que eu.
Doeu.
Meu ego, pobrezinho, ficou machucado.
Tentei apitar e me dei mal. Apitei onde não foi falta, não apitei onde foi, dei vermelho tolamente, economizei o amarelo, dei amarelo onde eu mereceria um vermelho…
Muito lamentável.
Tempos depois fiz um breve curso de arbitragem, coisas básicas. Desencanei. Aprendi coisas interessantes, revi algumas ideias, aprimorei-me. Decididamente, porém, não é fácil.
É preciso muita vivência, muita prática para apitar um jogo. E apitar um jogo de primeira ou segunda divisão, então, é mesmo coisa para poucos.
Nunca pisei num gramado com apito na boca, felizmente. Minha ânsia de jogar, quando mais novo, e meus joelhos associados a um relativo excesso de peso, quando mais erado, livraram-me desse mico.
Apitar é difícil.
Mas parece fácil.
Temos, todos nós, absoluta certeza do erro ou do acerto do juiz – o mais curioso é que o erro só acontece quando nos prejudica e o acerto só acontece quando nos favorece. Fato deveras interessante, esse, que manda pra caixa-prego todas as leis da matemática e de sua filha travessa, a estatística. O gênio que conseguir explicá-lo ganhará, tenho certeza, um Nobel de matemática ou correlato. E se não existe, que se crie.
Da mesma forma que temos nossas convicções profundas sobre os erros e acertos, temos, igualmente, inabalável fé que S.Sa. está em campo com a finalidade única e exclusiva de prejudicar nosso time. O mais curioso é que a turma do outro lado da arquibancada tem a mesma convicção com sinal trocado. Outro mistério a ser resolvido.
Isso me faz pensar, uma vez mais, na matemática e na estatística: será possível que não exista um só árbitro honesto, puro de coração e malícia ausente nos pensamentos? Puxa vida, que coisa mais incrível essa! Tem que existir, ora pílulas, nem que seja a exceção necessária à confirmação da regra sagrada do torcedor de futebol de que todo juiz é ladrão.
Temos, portanto, mais um mistério. A continuar assim vou pedir ao Dan Brown para escrever a continuação desse post, algo como um “Código Da Vinci” da arbitragem de futebol.
Enfim, a verdade é que nós, torcedores e blogueiros, cronistas, repórteres, comentaristas, locutores e outros profissionais, vemos um jogo que não é o mesmo do árbitro. Seja no sofá de casa, na cabine de transmissão, na cadeira numerada, no cimento da arquibancada, nossa visão da partida é radicalmente distinta da que tem o árbitro. Temos uma visão aérea, rica no geral, pobre no detalhe. Ótima para definir uma posição fora de jogo – o impedimento – se estivermos no alinhamento certo, sempre péssima para a definição de uma jogada mais sutil.
Estamos sentados, para começo de conversa (bom, tem uma galera que prefere ficar em pé… paciência; ficam em pé, mas ficam parados). Ou seja, não estamos correndo, não estamos com o fôlego comprometido (se estiver, corra ao médico mais próximo agora!), não estamos num movimento alucinante, cercados por outros em movimentos ainda mais alucinantes, não estamos ouvindo os sons característicos de uma partida de futebol, não ouvimos o choque de dois corpos ou duas canelas ou um pé e uma canela, não temos como aquilatar se doeu ou se é frescura ou se é mera encenação, não ouvimos e não sentimos a verdade nas palavras ou sons que a boca expele na hora de um choque, excelentes indicativos do que aconteceu, não estamos vendo os olhares trocados ou não trocados, a distância nos priva das manhas e artimanhas de marmanjos escolados na arte da dissimulação.
O árbitro vivencia tudo isso a um, dois, quatro, dez metros de distância, enquanto puxa o ar para seus pulmões, oxigenando o corpo movido a adrenalina. Melhor do que ninguém ele pode avaliar o que aconteceu. Ele pode perceber o que nós, distantes, não conseguimos.
Ao contrário de todo mundo que assiste, ele não tem tempo para pensar a respeito, ele tem que decidir.
É pá puf!
Aconteceu, decidiu.
Certo ou errado.
Entre ver, analisar, julgar, decidir, apitar, ele tem dois, três, quatro décimos de segundo.
De segundo, não de hora.
Não dá para falar “um Mississipi”.
Ele decide.
Pode ter decidido corretamente, pode não ter.
Gostemos ou não, S.Sa. é humano, passível, portanto, de errar
E foi exatamente assim que o futebol cresceu, evoluiu, tornou-se o mais importante, o maior esporte do planeta Terra, com erros reais ou supostos sendo, simplesmente, incorporados à história.
O apito, ou sua ausência, é o sinal que deflagra rajadas de críticas.
Feitas com o apoio luxuoso do olhar eletrônico (e não crônico) de 18 câmeras, maravilhosas, high tech ao extremo, com zooms poderosíssimas captando imagens impensáveis, que por sua vez são editadas e transmitidas em slow motion e, não bastasse tudo isso, o editor mantém o dedo pressionando a tecla “Replay” “Replay” “Replay” “Replay” “Replay” “Replay” “Replay” “Replay”…
Meia hora ou meio minuto depois, tanto faz, não há diferença, decretamos:
O juiz errou!
E a vida segue com o erro, suposto, de S.Sa. perpetuado, cantado vezes infinitas em prosa e verso, com rima e sem rima, com ofensa e sem ofensa. Perpetuado e multiplicado nos comentários dos blogs, nas conversas de estádio ou de botequim ou na sala, com a presença saborosa de comes e bebes.
Às vezes o erro não é suposto, é erro mesmo, mas aí, bom, aí não tem jeito: errar é humano. Quem pode a primeira pedra atirar?
Parto de alguns princípios: no decorrer de um período razoável, erros contra e a favor equivalem-se, para todo e qualquer time. Alguns, reais ou supostos, são mais candentes, são mais marcantes, são mais importantes.
Paciência.
A própria vida é assim, também, fora do futebol (dizem que há vida fora do futebol… até creio que existe, mas ainda não provaram de forma satisfatória).
Outro princípio: todos erram, inclusive você, amigo leitor e – pasme! – até eu cometo meus erros.
Ok, brincadeira, brincadeira, mas algo me diz que cometi um erro ao abordar esse tema e a partir desse ponto de vista.
Tenho por princípio, também, acreditar na honestidade das pessoas, até prova em contrário.
Enfim, o erro faz parte de nossas vidas, faz parte do esporte, faz parte do futebol. Isso não é uma defesa do erro ou um elogio do erro, é tão somente uma constatação: o erro existe.
Eu o aceito, mesmo não gostando, seja suposto ou real.
Finalmente, mais um princípio: não discuto arbitragens.
Posso até emitir uma opinião num lance ou outro, ressalvando ser somente isso: minha opinião
Porque não tenho a mesma visão e as mesmas informações que tem o árbitro e, por isso mesmo, eu aceito as decisões da arbirtragem, gostando ou não delas.
Se errou ou acertou, paciência, vida que segue.
O futebol tem coisas mais interessantes e aprazíveis para serem discutidas.
Ah, sim, gosto muito de teorias da conspiração, especialmente na literatura, no cinema e nas séries de TV. Só.
Um ótimo texto escrito pelo Emerson Gonçalves, publicado dia 05/-7/2011, no site globo.esporte.com - Olhar Crônico Esportivo
Na foto: árbitro Toninho (ACAF) tomando uma decisão no futebol amador (Copa Kaizer) em São Paulo - Brasil.
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