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3 de dez. de 2010

Ser juiz de futebol é vocação?

Que sentimento leva uma criatura a se meter em semelhante camisa de 11 varas?

Quem, quando menino, não ouviu, não ouve e não ouvirá esta pergunta indefectível: "Meu filho, o que é que você quer ser na vida?" O leque de sonhos da meninada, pelo menos no meu tempo, era o mais amplo possível. Eu quero ser bombeiro. Eu quero ser jogador de futebol. Eu quero ser pescador. Eu quero ser vaqueiro. Doutor, poucos querem ser, apesar da pressão, às vezes ostensiva, às vezes ardilosa, do pai e da mãe.

No universo do futebol, a preferência recai na linha atacante. Juiz, porém, como está dito acima, não conheço um só caso. Então, pergunto: o que leva uma criatura a decidir se transformar em árbitro de futebol? Será uma vocação catastrófica? Só Deus sabe... Nos tempos modernos, há quem defina, assim, a figura do árbitro de futebol: "O árbitro é o sujeito que rouba o time da gente na presença da multidão e ainda vai pra casa protegido pela polícia".

Conto a vocês uma história que ilustra bem o calvário que tem sido, ao longo do tempo, a vida do juiz de futebol.

Aconteceu numa cidadezinha do interior da Bahia, ali pelos anos 40. Era uma partida entre o anfitrião Iracema F.C. e o Modesto F.C.. O delegado Fontenele foi ao vestiário do juiz antes de começar o jogo.

- Estou aqui - disse o policial - pra uma visita de cortesia, mas também pra lhe dar garantias de vida - disse, explicando que falava na condição de delegado da cidade.

- O senhor não é daqui, mas sabe como é o futebol: o time visitante, aqui, não pode vencer, nunca. A única vez em que isso aconteceu, me lembro como se fosse hoje: a torcida invadiu o campo, deu nos visitantes, quase mata o juiz.

- Seja o que Deus quiser - disse o árbitro ao delegado, que reagiu assim:

- Seja o que Deus quiser, não; não vamos meter Deus nesse jogo porque não dá certo. É melhor dizer: seja o que o Iracema quiser...

O zero a zero não convinha ao anfitrião, que perderia a taça oferecida pelo prefeito. Quarenta minutos do segundo tempo, nada de gol; ou melhor, nada de chegar o gol encomendado pelo delgado Fontenele, em nome da paz coletiva.

O juiz olhou o cronômetro: o alambrado era o próprio público, que, na sua explosiva impaciência, vinha fechando o cerco, mal deixando espaço para o vaivém dos bandeirinhas.

Não conversou. Passando pelo ponta-de-lança, o juiz deu uma dica: no primeiro abafa, pode cair na área, espalhafatosamente. Foi o que fez o jogador.

Pênalti contra o Modesto F.C., que é o visitante.

Protesta daqui, reclama dali, bola na marca, lá vem para a cobrança Castanheira, o artilheiro e, popularmente, dono do time.

E Castanheira, com um tremendo coice, chuta a bola às nuvens. Desespero no público, desespero no campo. Faltando três minutos, como é que vai acontecer um desastre desse?

Enfim, se havia ainda três minutos de jogo, nem tudo estava perdido. Era só cair outro na área do Modesto que o juiz não hesitaria em aplicar aos faltosos o castigo que a lei determina. Tempo para a cobrança não é problema porque a regra é clara: o pênalti é a única falta que pode ser cobrada além do tempo regulamentar. O juiz deve prorrogar indefinidamente o jogo até que o pênalti seja cobrado. Portanto...

Pênalti contra o Modesto F.C..

Jogadores afastados da grande área. Quem ajeita a bola pra cobrança? Castanheira, artilheiro do time, ídolo da cidade e a quem os próprios colegas, numa prova de solidariedade, haviam escalado para chutar o pênalti e se reabilitar do fracasso anterior.

Quando o juiz percebeu que o homem do pênalti seria o Castanheira, foi ao encontro dele, tomou-lhe discretamente a bola das mãos e, quase cochichando, sentenciou:

- Me desculpe, mas você, não. Você vai acabar me matando aqui!

Perguntou quem era o ponta-esquerda, entregou a bola e mandou o outro cobrar o pênalti. Tomou posição, apitou e repetiu mentalmente a frase-oração:

- Seja o que Deus quiser!

E Deus quis: Iracema 1 a 0.

Nota: texto do  jornalista   Arrmando Nogueira - Revista Lance A+, levanta a questão.

Foto: Herbe Roberto Lopes

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